Masculinidade tóxica: conceito, exemplos e como combater os mitos do homem ideal


Homem não chora. Gosta de futebol e cerveja. Não perde uma oportunidade de fazer sexo. Está sempre desejando e abordando mulheres. Não nega fogo. É agressivo. Competitivo. Não veste rosa. Homem de verdade é provedor e bem-sucedido. Homem que cuida dos filhos, compartilha as tarefas domésticas e carrega sacola de compras é um frouxo que se deixou dominar. Essas e tantas outras afirmações sobre como os homens devem ser e se comportar são as bases para a formação do que hoje se conhece como “masculinidade tóxica”.

O assunto, frequente nas rodas feministas, vem sendo cada vez mais debatido entre os próprios homens: hoje, grupos criados com essa finalidade dedicam-se ao tema em postagens na Internet e até mesmo em encontros presenciais. Pudera: um estudo da Organização Pan-Americana de Saúde (OPS), publicado nesta segunda-feira (18), apontou que a masculinidade tóxica reduz a expectativa de vida dos homens em todo o continente.

“Existe uma estreita relação entre masculinidade e saúde. Os papéis, normas e práticas impostas socialmente aos homens exigem ou reforçam sua falta de autocuidado e até negligenciam sua própria saúde física e mental”, afirma o texto.

Os reflexos vêm sendo sentidos também na fábrica de sonhos da publicidade. Diversas marcas, que há muito são pressionadas para não reforçarem estereótipos depreciativos em relação à mulher e ao feminino, se veem impelidas a repensar também a maneira como o homem e o masculino são representados.

O que define um homem de verdade? Se a pergunta fosse feita há alguns anos, a resposta envolveria a valorização da heterossexualidade, agressividade, força física, status financeiro e sexual. E, se a publicidade está aprendendo a evitar estereótipos sobre mulheres, o público consumidor cada vez mais cobra pela desconstrução de ideais masculinos”, pontuou Karina Balan Julio, que apresentou um balanço sobre a importância do tema atualmente para marcas como a Axe, a Natura e a Bepantol, por exemplo.

No início deste ano, o El País publicou uma matéria acerca da polêmica desencadeada por uma propaganda da Gilette, que trazia à baila o tema da masculinidade tóxica não só explicitando cenas cotidianas de abuso contra as mulheres, mas também conclamando os homens a não naturalizá-las e a se insurgir contra essa lógica, além de sugerir uma nova maneira de educar os meninos, os homens do futuro, baseada no diálogo e no afeto.

Em um artigo, também publicado no El País, Guillermo Alonso alfinetou aqueles que se sentiram incomodados com o comercial, argumentando que as reações se deveram ao fato de que a maioria dos homens se identificara com os exemplos ruins e não com os bons. “Se como homem você se ofende com o anúncio da Gillette, você tem um problema”, provoca o autor já no título.

“Nas redes sociais, há homens que criticam veementemente o spot — e jogam seus produtos da Gillette no lixo, jurando que não os comprarão mais — porque estão muito ofendidos. Ao retratá-los dessa forma, pensam eles, a Gillette está se dirigindo a eles e os acusando de serem violentos, assediadores, mansplainers e marrentos de manual.

O mais chamativo é que nenhum parou para pensar que o anúncio, em seu espírito aspiracional, está convidando o espectador a se identificar com os outros homens, os que tentam apartar brigas, evitar situações de assédio a mulheres e defender às vítimas de bullying no colégio”, escreveu Alonso.

Os mitos do homem ideal

Uma iniciativa dedicada a questionar o modelo masculino vigente há séculos é o site El Hombre, que publicou uma lista de alguns dos comportamentos que, de acordo com o senso comum, compõem o que se entende por homem ideal.

O texto faz questão de enfatizar que não passam de mitos:

“MITO #1: Cabe a um homem estar sempre sob controle e jamais demonstrar tristeza, medo, ansiedade ou vulnerabilidade emocional.
MITO #2: Cabe a um homem fazer sexo sempre que houver oportunidade para tanto, e todo homem cuja libido não funciona adequadamente é desprovido de valor.
MITO #3: Cabe a um homem agir de maneira agressiva e competitiva sempre.
MITO #4: Cabe a um homem expressar interesse por coisas como futebol, cerveja e sexo. Se não o faz, ele é efeminado.
MITO #5: Não é conveniente que um homem seja delicado ou compassivo.
MITO #6: Cabe a um homem ser forte e poderoso o bastante para conquistar todas as coisas que deseja, tanto para si mesmo quanto para aqueles que ama.
MITO #7: Cabe a um homem ser perfeitamente autossuficiente e atingir o sucesso sem que o auxiliem ou o apoiem de maneira alguma.
MITO #8: Cabe a um homem exercer domínio sobre todas as mulheres de sua vida.
MITO #9: Cabe a um homem exercer domínio sobre os homens mais fracos do que ele.
MITO #10: Cabe a um homem sustentar a casa sozinho e, se ele não conseguir, não é um homem de verdade.”

As “prisões” masculinas

Um outro exemplo de como os próprios homens vem se tornando mais conscientes da necessidade de romper com os modelos que reforçam um comportamento masculino tóxico é o Portal Papo de Homem.

Em um vídeo do TEDx Talks que conta com mais de 108 mil visualizações, Guilherme Valadares, um dos criadores do projeto, começa sua explanação dando três exemplos do que chamou de “prisões” masculinas.

Primeiro, falou de um amigo que gostaria de ser mais carinhoso com a mulher e os filhos e simplesmente não sabia como.

Em seguida, lembrou de quando um outro, bonitão e bem-sucedido, o procurou, profundamente envergonhado, para contar que não sabia como lidar com as sucessivas “broxadas” que andavam assombrando sua vida sexual. Guilherme, então, respondeu ao amigo que já havia passado pelo mesmo problema e recomendou um terapeuta sexual a ele, que imediatamente expressou seu alívio por descobrir que não era o único a enfrentar esse tipo de experiência – e, também, que havia solução.

Guilherme relatou, ainda, o caso de um terceiro amigo que ficou desempregado. O que se tratava, inicialmente, apenas de uma questão de ajuste doméstico, uma vez que sua companheira continuava trabalhando, transformou-se em vergonha, isolamento e, por fim, um quadro de depressão. Afinal, para a sociedade, o homem precisa cumprir seu papel de provedor. Demorou um ano até que esse homem pedisse ajuda, tivesse apoio e, finalmente, pudesse atravessar a dificuldade.

“Eu começo com histórias em vez de dados de pesquisa porque a gente não precisa de pesquisa para saber que os homens estão mal. É só olhar para o lado e escutar. E o que todas essas histórias têm em comum? O silêncio. Homens que não falam. Seja por medo, seja por insegurança, por não saber a quem procurar, ou, às vezes, com a desculpa de que eles não querem levar o problema para outra pessoa. Mas, quando você fica em silêncio, esse é o caminho mais rápido para fazer justamente quem você ama sofrer junto. Os homens vivem em prisões que eles mesmos ajudam a sustentar”.

Segundo Guilherme, o Papo de Homem foi criado para dar conta deste buraco: a solidão masculina.

Uma luta de todos

É inegável o protagonismo dos movimentos feministas no pautar dessas discussões. O estudo da Organização Pan-Americana de Saúde, as vozes masculinas se multiplicando na Internet para questionar os padrões e um início de ruptura no imaginário coletivo encampado pelo próprio mundo da publicidade parecem não só demonstrar que as pautas feministas estão ecoando cada vez mais. Tudo isso reafirma o que as mulheres vêm dizendo há tempos: a masculinidade tóxica não faz bem para ninguém.

Como lembrou o articulista Filipe Batista recentemente, em coluna publicada na Vogue, o padrão de homem ideal (geralmente branco e heterossexual) traz graves consequências para minorias, por frequentemente se relacionar ao estímulo à violência, à misoginia, ao racismo e à homofobia.

A solução? “Despertar para as diversas masculinidades, de modo mais livre, saudável e positivo”, defende Batista.

“Com esse intuito, é imprescindível reivindicar a participação ativa dos homens em atividades domésticas e no cuidado dos filhos, além de repensar a educação de meninos desde a infância. Não só o que mães e pais dizem, mas como se relacionam e dividem as tarefas de casa, também fundamentam a percepção da criança sobre masculinidade. Paternidade ativa significa ultrapassar a noção de simples proteção, e dedicar-se ao cuidado e divisão real de obrigações.

A casa e a escola devem ser um ambiente seguro para livre expressão de emoções, sem julgamentos. Jamais incentivar ou autorizar violência como resposta a conflitos, ensinando a buscar apoio quando preciso. Meninos aptos a se expressar, trocar e dividir saberão mais tarde, quando adultos, reconhecer seus limites, sentimentos e respeitar o corpo, a individualidade e as decisões das mulheres. Além disso, precisam ser estimulados desde cedo a se apropriar do espaço doméstico, que também é responsabilidade deles, e a brincar livremente, sem qualquer forma de inibição ou constrangimento, independente de suas preferências”.

Há muito trabalho pela frente quando se fala na construção de uma sociedade mais justa e igualitária. As notícias costumam ser desanimadoras, mas vale à pena olhar para essas transformações com otimismo e seguir em frente. Aos poucos, todos se dão conta de que certos modelos já não nos cabem mais.

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Gisele Maia

Jornalista e mestre em Ciência da Religião. Tem 18 anos de experiência em produção de conteúdo multimídia. Coordenou diversos projetos de Educação, Meio Ambiente e Divulgação Científica.


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