Quarentena dramática e guerra religiosa: a tragédia humana do coronavírus na Índia


Algo que ficou claro desde que a pandemia do novo coronavírus se instalou em todo o mundo é que a desigualdade social e econômica agrava a situação dos países mais pobres e das comunidades vulneráveis dentro dos próprios países.

Embora a Covid-19 não escolha suas vítimas por classes sociais, as classes médias e abastadas são privilegiadas no enfrentamento à doença, já que podem trabalhar remotamente ou viver de renda.

Situação dramática na Índia

Não apenas aqui no Brasil existe um temor sobre as consequências que o coronavírus pode acarretar nos rincões do país e nas periferias. Na Índia, a situação, talvez, seja ainda mais dramática.

De acordo com Soutik Biswas, correspondente da BBC News no país oriental, a Índia declarou como quarentena um bloqueio de 21 dias desde o dia 24 de março para evitar a propagação da Covid-19. Os transportes públicos estão desativados, obrigando uma horda de pessoas a se deslocar quilômetros a pé.

Goutam Lal Meena é um trabalhador que tem sobrevivido com água e biscoitos e teve que fazer um percurso a pé para retornar a sua casa. Assim como ele, milhões de indianos estão se dispersando das cidades bloqueadas para retornar às suas casas em aldeias. Estima-se que cerca de 100 milhões deles vivem em moradias inadequadas em guetos urbanos.

O fechamento das cidades transformou esses trabalhadores em refugiados dentro de seu próprio país da noite para o dia. Seus trabalhos desapareceram assim como os seus salários.

Mulheres, crianças, homens estão peregrinando em uma jornada carregando pouca água e comida, seja sob o sol, seja sob as estrelas. O jornal The Indian Express assim definiu a situação no país: “A Índia está voltando para casa”.

O êxodo, ainda que exija dos indianos uma força sobrenatural, é motivado pela vontade de voltar a um lugar de pertencimento. Entretanto, apesar da vontade de reencontrar o refúgio familiar, existe a consciência das dificuldades dessa odisseia.  Um trabalhador automobilístico de 26 anos, que teria de caminhar por 250 km até chegar a sua cidade natal, contou que o percurso, que levaria 4 dias, poderia ser mais fatal do que a Covid-19:

“Vamos morrer andando antes que o coronavírus nos atinja”.

Guerra religiosa pela cidadania

Para agravar ainda mais a situação, a Índia está decidindo quem é e quem não é cidadão. Segundo uma reportagem do New York Times, os indianos muçulmanos estão sendo tratados como estrangeiros por seu próprio país.

Existe uma guerra de cidadania na Índia. Além dos tribunais, o Estado também concluiu recentemente uma revisão mais ampla da documentação de cada residente para determinar quem era cidadão. Essa análise revelou que cerca de 2 milhões dos 33 milhões de residentes do estado de Assam poderiam ser estrangeiros. Esse grupo é majoritariamente constituído por muçulmanos.

Parece estar havendo uma tendência de ampliar o que está havendo em Assam para toda a Índia. Isso porque o primeiro-ministro, Narendra Modi, está comprometido em “refundar” a história secular e multicultural da Índia sob as bases de um nacionalismo tradicionalmente hindu.

O New York Times entrevistou um atual e cinco ex-membros dos tribunais de Assam que analisam os estrangeiros considerados suspeitos. De acordo com os cinco ex-membros, eles se sentiram pressionados pelo governo a declarar muçulmanos como não-cidadãos.

O partido de Modi tem suas raízes em uma visão nacionalista hindu. Os líderes do partido, na eleição passada, prometeram usar o método de verificação de cidadania aplicada em Assam no restante da Índia. Entretanto, Modi negou que ele tenha esse plano.

Os muçulmanos, que são minoria na Índia, têm sido excluídos da lei de imigração que facilita a obtenção da cidadania indiana para migrantes sem documentos de países vizinhos. O problema é que muitos indianos pobres não têm documentos nem os recursos para obtê-los, como os registros de votos eleitoral paternos e de propriedade de terras.

A escolha de quem é rotulado como estrangeiro suspeito parece ter um viés religioso, já que o número de muçulmanos que passam pelos tribunais é muito maior do que o de hindus, de acordo os entrevistados pelo NY Times.

Se uma pessoa não for capaz de provar a sua cidadania, pode até ser detida e enviada para uma prisão. Isso em um momento em que o confinamento é a única medida capaz de evitar a propagação do coronavírus.

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Gisella Meneguelli

É doutora em Estudos de Linguagem, já foi professora de português e espanhol, adora ler e escrever, interessa-se pela temática ambiental e, por isso, escreve para o greenMe desde 2015.


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