O “x” da questão: dá para ter linguagem inclusiva sem se atrapalhar?


O que é a linguagem inclusiva? Trocar o “x” ou o “@” pelas vogais “o” e “a” realmente podem ser consideradas práticas inclusivas em respeito ao não binarismo de gênero? Será a língua tão autoritária?

Língua x discurso

Primeiramente, é preciso que se faça uma distinção entre língua e discurso. A língua é um sistema simbólico convencionado pelos falantes de uma comunidade linguística.

Sendo assim, há uma margem de restrição, visto que esse sistema é previamente herdado pelos membros de tal comunidade, e uma margem de manobra, já que a própria língua oferece aos seus usuários a possibilidade do exercício da criatividade, embora esta, ainda, esteja restrita a regras limitadas pelo próprio sistema – é preciso abandonar qualquer tipo de moralismo e julgamento sobre esse conjunto de regras.

Já o discurso mobiliza estruturas de outra ordem, visto ser uma forma de agir sobre o outro pelo uso da língua. Todo discurso é assumido por um sujeito de linguagem que contrói o seu enunciado para outrem. O discurso seria, então, o uso da língua em um contexto específico de que participam duas instâncias enunciativas (EU e TU).

Preconceito linguístico

Por isso, não se pode dizer que a língua, ou melhor, o discurso é neutro. É a forma como a língua é usada que imprime ideologias, crenças, valores e, também, preconceitos. Um exemplo disso são os discursos de ódio, que podem ser proferidos ainda que façam uso de uma linguagem inclusiva.

Não se pode condenar a língua como se ela fosse uma entidade desencarnada que promove exclusão social. São as relações de desigualdade entre os sujeitos de uma sociedade que criam e reforçam uma série de assimetrias e violências que se refletem em diversas áreas, inclusive, na linguagem.

A discussão sobre o pronome neutro e a linguagem inclusiva, que já se tornou uma polêmica, deve levar em conta que, sim, falar é agir sobre o outro, mas que é preciso muito mais do que mudar a língua para garantir efetivas mudanças com fins para a eliminação das desigualdades.

Criatividade linguística

É na escrita que a maioria dos manuais de linguagem inclusiva reivindica mudanças. Entretanto, falando-se de língua, para que haja mudança linguística é preciso que ela já tenha sido incorporada pela comunidade de fala. Não é por um decreto que as pessoas passarão a adotar ou não uma inovação linguística.

Quem se recorda do Projeto de Lei nº 1676/1999, de autoria do deputado Aldo Rabelo? Ele dispunha “sobre a promoção, a proteção, a defesa e o uso da língua portuguesa” restringindo o uso de palavras estrangeiras no Brasil. Simplesmente não colou, porque os estrangeirismos em nada ameaçam a integridade do sistema da língua portuguesa.

Voltando ao tema da criatividade linguística, um bom exemplo dela e de como o estrangeirismo convive bem com o português brasileiro é a palavra inglesa “top”, que foi acomodada ao nosso sistema linguístico com as variantes “topizeira”, “topíssimo”, “topaço”, recriando uma adjetivação superlativa.

Enfim, embora a linguagem inclusiva seja importante politicamente para apagar o sistema de gênero binário como atributo de sexualidade e identificação, de forma a reconhecer a multiplicidade das formas de um corpo existir, é preciso entender que um decreto ou um manual não vão, imediatamente, interferir no sistema linguístico de qualquer língua, mesmo na modalidade escrita, ainda que esta seja mais fácil de ser “controlada”.

Linguagem inclusiva

Um primeiro passo para praticar a linguagem inclusiva sem sequer alterar o sistema linguístico é, por exemplo, deixar de usar a palavra “homem” como sinônimo de “ser humano”, porque ambas não são sinônimas. Outras possibilidades dadas pela língua, nesse mesmo sentido, são substituir:

  • filhos por crianças;
  • alunos por discentes;
  • professores por docentes;
  • jovens por juventude.

A língua, aliás, é bem democrática quando passamos a vê-la pelo ponto de vista da substituição lexical. Ela nos oferece possibilidades já existentes em seu próprio sistema que podem ser praticadas imediatamente sem ter que esperar uma mudança lenta e gradual.

Enquanto isso… como designar as pessoas

Entretanto, o governo do Québec, no Canadá, quer acelerar essa mudança. O governo federal publicou em sua página oficial um manual sobre como designar as pessoas de gênero não binário em francês (língua oficial do Québec).

Na Espanha, a Real Academia de Língua Espanhola (RAE) causou revolta ao voltar atrás em não considerar o gênero duplo (“todas” e “todos”), nem o “x”, o “@” e o “e” (todxs, tod@s” e “todes”), informa o National Geographic. O diretor da RAE defendeu que:

“O problema é confundir a gramática com o machismo”.

A linguagem inclusiva não atende somente às mulheres cisgênero; ela é uma forma de atender todes àquelas e àqueles que reivindicam o reconhecimento de uma forma própria de serem identificadxs.

Aqui no Brasil, o estado do Rio Grande do Sul, em 2014, também disponibilizou o Manual para o Uso não Sexista da Linguagem, como forma de promover a igualdade de gênero e a erradicação de preconceitos. Ainda que o manual seja mais voltado para o uso da linguagem contra a discriminação de mulheres, trata-se de um importante instrumento aplicado pela administração pública para mostrar como a linguagem pode ser usada para oprimir e como deve ser evitado esse uso.

As limitações da língua

Esta semana, a Revista da Associação Brasileira de Linguística (Abralin) publicou o artigo “Sobre gênero neutro em português brasileiro e os limites do sistema linguístico”, do especialista Luiz Carlos Schwindt, que faz uma abordagem de neutralização de gênero em português brasileiro (PB).

O artigo avalia quatro tipos de empregos correntes de gênero inclusivo:

  • uso de feminino marcado no caso de substantivos comuns de dois gêneros (ex. a presidenta);
  • emprego de formas femininas e masculinas, sobretudo em vocativos, em vez do uso genérico do masculino (ex. alunas e alunos);
  • inclusão de novas marcas no final de nomes e adjetivos, como x e @ (ex. amigx, amig@);
  • ou ampliação da função de marcas já existentes, como -e (ex. amigue); alteração na base de pronomes e artigos (ex. ile, le).

Schwindt destaca que qualquer mudança no sistema gramatical de uma língua depende de um acordo coletivo sobre o referente semântico das formas inovadoras. Isso significa que as pessoas devem ser capazes de identificar no mundo o significado de categorias como cistransnão binário etc. para que as marcas linguísticas que as designem sejam estabelecidas pelo uso.

Binarismo e desigualdades

A linguagem inclusiva pretende abolir o binarismo de gênero que estrutura as sociedades patriarcais. O binarismo é uma forma de opressão que se expressa em diferentes estruturas sociais, como as relações de trabalho, a sexualidade, a organização familiar e, também, na linguagem, entre outras.

Como diz Judith Butler, a “oposição binária sempre atende a propósitos de hierarquia”. Logo, o binarismo edificou todo o pensamento ocidental que classificou “homens” e “mulheres”, “masculino” e “feminino” como fatos naturais e não como categorias políticas.

A definição de gênero é, então, uma forma de interpretação cultural. Analisando a questão pela ótica do gênero gramatical, a linguagem inclusiva critica a generalidade do masculino que exclui a particularidade do feminino e de todas as outras formas que sequer são marcadas pela língua.

É preciso atuar de forma que as estruturas do patriarcalismo sejam reconfiguradas para a construção de uma sociedade mais justa, em que todxs tenham o seu lugar para existir como queiram estar (no lugar do deve ser).

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Gisella Meneguelli

É doutora em Estudos de Linguagem, já foi professora de português e espanhol, adora ler e escrever, interessa-se pela temática ambiental e, por isso, escreve para o greenMe desde 2015.


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