Sem diversão: para muitos brasileiros, as férias são a temporada da fome


Muitos brasileiros não comemoram a chegada das férias, por um motivo que está longe de ser o dos pais de classe média que fazem malabarismos e revezamentos entre parentes durante o recesso escolar para deixar as crianças em segurança e poderem trabalhar tranquilos. A realidade dos mais pobres é muito pior.

Como mostrou a BBC Brasil em reportagem de Paula Adamo Idoeta e Mariana Sanches nesta segunda-feira, para aqueles em situação de vulnerabilidade social, férias é sinônimo de fome. A reportagem ouviu e relatou a história de diversas famílias que, sem poderem contar com a merenda distribuídas nas instituições públicas de ensino, precisam recorrer aos familiares, instituições e associações comunitárias para que as crianças tenham o que comer.

“É muito desemprego, mães com cinco, seis ou oito filhos que não têm nada dentro de casa. Nem mesmo colchão, gás para cozinhar ou cobertor para este frio. Nas férias, algumas mulheres não têm o que dar aos filhos. Tenho 48 anos, sempre trabalhei nisso (assistência comunitária), e nunca vi a coisa tão ruim quanto está agora. Temos aqui no bairro 285 famílias em situação de miséria total”, conta Maria Aparecida de Souza, líder comunitária do Paranoá Parque, conjunto habitacional do Minha Casa Minha Vida que fica a 25 minutos de distância do Palácio do Planalto, em Brasília.

A reportagem também trouxe o relato de famílias que já não tem mais condições de arcar com as despesas mensais:

“Se eu pagar a prestação do apartamento ou a conta de água, não temos o que comer. Quando a situação aperta, prefiro dar comida pra minha neta e durmo com fome”, realtou a faxineira Marinalva Maria de Paula, de 57 anos, que receia ser despejada do Conjunto Habitacional onde vive em São Paulo.

Os números revelam um cenário sombrio: segundo as informações publicadas pela BBC, 9 milhões de brasileiros entre zero e 14 anos do Brasil vivem em situação de extrema pobreza, considerando cálculos da Fundação Abrinq feitos a partir de dados do IBGE. Além disso, em 2017, o Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional do Ministério da Saúde (Sisvan) identificou 207 mil crianças menores de cinco anos com desnutrição grave. E ainda: de acordo com última pesquisa de Segurança Alimentar do IBGE, realizada em 2013, uma em cada cinco famílias brasileiras passava por restrições alimentares ou tinha a preocupação em relação à falta de dinheiro para comprar comida.

Educadores e coordenadores de projetos sociais contaram à reportagem que é comum as crianças frequentarem aulas e cursos visando principalmente o lanche. Algumas, inclusive, guardam uma parte para levar para os irmãos em casa.

“De fato há uma crise no país, e a percepção de que o aluno vai para a escola para comer é real, a gente é que aproveita a ida dele para ensinar”, afirmou Maria Izabel Noronha, presidente do sindicato dos professores da rede estadual paulista (Apeoesp) e deputada estadual (PT-SP).

A desnutrição é um problema apontado em diversas pesquisas brasileiras como sendo um dos entraves ao processo de aprendizagem entre as crianças mais pobres. Um outro fator agrava a situação: muitas delas estão não só desnutridas como sofrem de obesidade, um mal cada vez mais comum nas camadas mais vulneráveis da população, uma vez que os alimentos industrializados ultraprocessados, abundantes em calorias e pobres em nutrientes, são mais baratos.

A esse respeito, Maria Paula de Albuquerque, pediatra nutróloga do Centro de Recuperação e Educação Nutricional (Cren), entidade que atua em São Paulo, declarou à BBC:

“É difícil afirmar que a nutrição seja a causa específica e única de problemas no desenvolvimento infantil, quando a criança sofre também com um sistema educacional que não é adequado e com a falta de estímulos. Mas é um entre tantos fatores desse ciclo de pobreza cruel“.

Albuquerque, no entanto, afirma também que esse quadro é possível de ser revertido e que mesmo as crianças mais vulneráveis podem se recuperar e atingir seu potencial:

“Ainda que viva em situações adversas, a criança é um infinito de possibilidades. Seu cérebro tem enorme plasticidade para absorver novos hábitos. É importante, porém, fortalecer também quem cuida delas. Não conseguimos melhorar a condição de uma criança sem melhorar também a situação de sua família.”

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Gisele Maia

Jornalista e mestre em Ciência da Religião. Tem 18 anos de experiência em produção de conteúdo multimídia. Coordenou diversos projetos de Educação, Meio Ambiente e Divulgação Científica.


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