Pela primeira vez na história, população negra é maioria na universidade


Quem entrou na universidade pública nos últimos quinze anos talvez não se dê conta de que antes disso praticamente não existiam negros sentados nas cadeiras universitárias assistindo a uma aula. Entretanto, essa realidade mudou, graças a políticas de inclusão social implantadas pelos governos federais precedentes.

É o que constata a pesquisa “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, feita pelo IBGE e divulgada esta semana, com base na Pnad Contínua, informa O Globo. De acordo com a pesquisa, pela primeira vez na história do país o número de estudantes negros e pardos ultrapassou o de brancos nas universidades públicas brasileiras.

Em 2018, cerca de 1,14 milhão de estudantes se autodeclararam pretos ou pardos, enquanto 1,05 milhão das vagas de ensino superior (federal, estadual e municipal) estavam sendo ocupadas por brancos – 50,3% e 48,2%, respectivamente.

A analista do IBGE Luanda Botelho vê o cenário como uma melhora na trajetória social brasileira.

“É resultado de um processo, da universalização do ensino fundamental, correção do fluxo escolar, adequação na série correta, redução do atraso, redução do abandono, somando com as políticas de acesso ao ensino superior, temos esse resultado final”, comemora.

Um das causas desse resultado se deve à Lei 12.711/2012, chamada Lei das Cotas, sancionada para garantir que metade das matrículas nas universidades e institutos federais seja ocupada por estudantes de cotas raciais.

Não apenas nas instituições de ensino superior públicas os negros e pardos são maioria. Nas privadas, programas de financiamento como o Fies e o Prouni permitiram que 43,2% das vagas fossem conquistadas por essa parcela da população.

Nesse sentido, graças à adoção de políticas públicas foi possível fazer uma reparação histórica de exclusão, como constata o diretor da ONG Educafro, Frei David, que reconhece que os dados atuais refletem uma série de ações adotadas desde a década de 1990, como os pré-vestibulares comunitários, a luta pela isenção da taxa do antigo vestibular para pessoas de baixa renda e o sistema de cotas. Frei David explica que:

“As universidades públicas não estavam entendendo a maldade que era fazer um vestibular padrão para ricos de escolas particulares e pobres de escolas públicas. Então as cotas foram a maneira de quebrar isso. Foi uma conquista muito difícil, muito suada, via Congresso Nacional, mas conseguimos gerar um fluxo de pobres procurando as universidades públicas, o que não existia antes”.

Representatividade e dificuldades

As mudanças sociais que a presença majoritária de negros e pardos no ensino superior representa movimentam as estruturais sociais em vários níveis. Muitos desses jovens são os primeiros de suas famílias a terem essa vivência, como a estudante do curso de Letras na Universidade Federal Fluminense (UFF), Larissa Maciel (26 anos). Apesar dessa conquista, ela não se viu representada no curso, visto que não teve aula com nenhum professor negro e não tem muitos colegas negros em sua sala. A estudante revela que:

“Ter mais negros na universidade é o mínimo de justiça que a gente pode ter. Sou coordenadora de um pré-vestibular social na Cidade de Deus, e digo aos alunos que a gente não se identifica de cara com o espaço da universidade. A primeira força é de expulsão, não de adaptação, mas a gente persiste para também reparar todo o desequilíbrio de 300 anos de escravidão no Brasil. É o início de um momento de justiça, para poder lutar por mais espaço e qualidade de vida”.

Outra dificuldade enfrentada pelos estudantes é a localização das universidades, principalmente, nos grandes centros urbanos. O estudante de Psicologia na UERJ, Renato Gama, relata que os campi universitários ficam longe da moradia de boa parte dos estudantes identificados como pretos e pardos. Outro desafio é conciliar os cursos de carga horária integral para os estudantes trabalhadores.

Outra universitária que foi a primeira de sua família a estar na universidade é Tamires Costa (25 anos), recém-formada em Psicologia com uma bolsa do Prouni. Filha de uma mãe analfabeta e de um pai que estudou até a 3ª série, ela recebeu incentivo familiar para nunca deixar de seguir os estudos.

“Eu ficava receosa porque achava que a universidade não era para mim. Tinha a sensação que era elitizado, que era só para quem tinha dinheiro”, disse a El Pais.

Ela, como tantos jovens bolsistas, teve muitas dificuldades para concluir o curso. Em 2016, Tamires ficou desempregada por um ano e não conseguiu pagar a mensalidade da faculdade. A jovem acumulou uma dívida de R$ 8 mil, paga graças a um empréstimo conseguido pela mãe para quitar a dívida para ela seguir estudando.

Tamires endossa a percepção de Larissa de que, embora o perfil do alunado, hoje, tenha mudado, os docentes são em sua maioria brancos. “Não tive nenhuma referência de docentes negros enquanto estava na graduação”, conta a psicóloga.

Além de garantir o ingresso de pretos e pardos nas universidades, é preciso que eles consigam permanecer nelas por meio de programas de apoio estudantil. Entretanto, nos últimos dois anos, os recursos do governo federal para a educação têm se tornado cada vez mais escassos, com a aprovação da Emenda Constitucional 95/2016, conhecida como a PEC do teto dos gastos públicos, que diminuiu o investimento público não apenas na área da educação como, também, na saúde.

Mercado de trabalho

Embora a representatividade negra nos campi universitários seja maior, no mercado de trabalho eles ainda ganham menos, sobretudo, as mulheres negras, em comparação aos salários pagos a homens brancos.

O estudo do IBGE mostra ainda que, mesmo concluindo o ensino superior, os negros ganham 45% menos do que os brancos. Além disso, em 2018, os brancos ocupavam 68,6% dos cargos de chefia, enquanto os negros ocupavam 29,9%.

Renato sabe que vai encarar, após a conclusão do curso, um mercado desigual para ele:

“Uma vez que a pessoa negra se forme como médica ortopedista, a consulta dela vale menos do que de uma pessoa branca. A consulta psicológica também vai ser mais barata. O valor do serviço oferecido pelo negro é um valor menor. O fato de ter mais estudantes negros na universidade é uma melhora, mas a qualidade da formação e como se dá a passagem e permanência desse estudante na universidade me impedem de usar a palavra avanço”.

Fraudes no sistema de cotas

Recentemente, tomaram os jornais as notícias sobre fraudes no sistema de cotas das universidades públicas cometidas por pessoas brancas.

Para ingressar em uma universidade pública pelo sistema de cotas, bastava que o candidato se autodeclarasse preto ou pardo. Sendo aprovado nos exames de ingresso, ele entrava pelas vagas reservadas a cotistas. Entretanto, muitas pessoas brancas aproveitaram dessa forma de ingresso para obterem vantagens indevidas, o que começou a ser denunciado por vários coletivos negros universitários.

Como medida para evitar as fraudes e garantir o sistema de cotas, as universidades públicas passaram a instituir, além da autodeclaração, comissões para verificação da autodeclaração dos candidatos.

Naturalmente, o aperfeiçoamento do sistema deve ser adotado pelas instituições de ensino, mas é fundamental que a sociedade brasileira entenda que o sistema de cotas é a reparação de uma injustiça. O pesquisador do IBGE Claudio Crespo avalia que os avanços para a população preta ou parda só acontecem quando há mobilização social e políticas públicas direcionadas para dirimir uma desigualdade que é histórica e estrutural.

“A intervenção de políticas públicas é um fator essencial para a redução dessa desigualdade. Onde há avanços percebidos, apesar das distâncias que ainda reside, são espaços em que houve intervenção de políticas públicas e também organização do movimento social para a conquista de uma sociedade mais igualitária, como as cotas para acesso ao nível superior”, comentou o pesquisador à Agência Brasil, via El Pais.

O estudante João da Silva analisa o quão fundamental é a representatividade da população preta e parda nas universidades:

“Quando uma criança negra vê que alguém com cabelo na régua, que veio da favela, que fala e anda do mesmo jeito que ele entrou numa universidade, você está mostrando pra essa criança que ele também pode e deve entrar lá”.

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Gisella Meneguelli

É doutora em Estudos de Linguagem, já foi professora de português e espanhol, adora ler e escrever, interessa-se pela temática ambiental e, por isso, escreve para o greenMe desde 2015.


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