Do empurrão aos 61 socos, a diferença é pouca


O Brasil está, mais uma vez, indignado. Dessa vez, o motivo são as imagens de Juliana Garcia sendo espancada dentro de um elevador por seu então namorado, Igor Cabral, ex-jogador de basquete da Seleção. Sessenta e um socos. Fraturas no rosto. Cirurgia de reconstrução. A cena brutal — registrada por uma câmera de segurança — viralizou e causou revolta nacional.

Mas é difícil não sentir que já vimos esse filme. Porque já vimos mesmo.

Violência doméstica no Brasil — e no mundo — segue um roteiro previsível, conhecido, mas ignorado. Começa com um empurrão. Um beliscão. Um tapinha “sem querer”. Uma ameaça velada. Uma humilhação pública. Depois vem o soco. O chute. A tentativa de feminicídio. A morte. Às vezes com vídeo, às vezes sem. Mas sempre igual.

O caso de Juliana se soma a tantos outros. O de Tatiane Spitzner, jogada da sacada pelo marido após apanhar no elevador. O de tantas mulheres sem nome e sem câmera. O de outras que nem chegam a denunciar. A única variável é a repercussão.

E é aí que precisamos dizer algo que muita gente se recusa a ouvir: a culpa é do agressor — óbvio —, mas o sistema que sustenta essa violência é mais profundo, e mais perverso, do que só o patriarcado. Porque não se trata apenas de machismo. Trata-se da cultura do “tapinha não dói”, do “entre tapas e beijos”.

Nelson Rodrigues provocava: “Nem todas as mulheres gostam de apanhar. Só as normais.” É um soco no estômago. Mas a psicanálise entende o que ele quis dizer: a pulsão masoquista é real. A mulher que apanha não “pede por isso”, mas pode repetir esse padrão sem perceber — porque foi isso que aprendeu. Porque foi isso que viu em casa. Porque confunde dor com afeto. Porque acha que ser amada é ser dominada.

E o homem que bate? O sádico, o perverso. Ele fareja, ele atrai. Ele detecta a mulher que tolera. Que perdoa. Que volta. Que acredita que “vai mudar”. Ele encontra a tampa da sua panela — ou é a panela que encontra sua tampa. Não importa. O fato é: a fome sempre acha a vontade de comer. E o ciclo se fecha.

Essa verdade desconcertante não serve para culpar a vítima, mas para aprofundar o debate. Porque o feminicídio nunca vem do nada. Em todos os casos — todos — a vítima viu os sinais. Sentiu o medo. Percebeu o controle. Mas ficou. E essa permanência, que é complexa, inconsciente e dolorosa, precisa ser enfrentada com mais coragem do que hashtags ou campanhas institucionais.

Juliana só virou manchete porque uma câmera registrou o que tantas mulheres vivem no escuro. E sejamos honestos: se o vídeo não existisse, seria possível que, se ela saísse viva, sequer denunciasse o agressor? E pior: voltasse com ele?

Esse não seria um final inusitado para um filme que já vimos e revimos.

Basta pensar na quantidade de mulheres que escrevem cartas para homens presos por feminicídio. Apaixonadas. Seduzidas pela fantasia de dominação. Quem explica esse fenômeno? Nelson Rodrigues? A vida como ela é…

Tá todo mundo louco? Talvez. Mas não no sentido clínico — no sentido estrutural. A cultura doentia que romantiza o ciúme, a posse e a agressividade está dentro de todos nós. Homens e mulheres. E só vai mudar se encararmos o que há de mais incômodo: a cumplicidade inconsciente com a violência.

Falar disso não é fácil. Mas é necessário. Porque a cada novo caso, a comoção dura pouco. A próxima agressão já está pronta para entrar em cena. O roteiro é previsível.

Um tapinha não dói.
Um empurrão é tolerável.
Depois vêm os 61 socos, as facadas, os tiros…

E se a vítima não morrer, ainda é capaz de perdoar o agressor.
E se não perdoar, o criminoso — até na cadeia — vai ter a oportunidade de encontrar outra vítima. Outro “amor”.
Não faltarão pretendentes…

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Daia Florios

Cursou Ecologia na UNESP, formou-se em Direito pela UNIMEP. Estudante de Psicanálise. Fundadora e redatora-chefe de greenMe.


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