O sucesso do Coringa em um mundo cheio de gente invisível


A que se deve o estrondoso sucesso do filme Coringa, estrelado pelo ator Joaquin Phoenix?

 ATENÇÃO: se você ainda não viu o filme, este texto contém spoiler.

É inegável a qualidade do filme Coringa. O filme, sendo um enunciado, contém os elementos que o constitui, segundo o pensador russo Mikhail Bakhtin: o conteúdo temático, a construção composicional e o estilo.

Esses três elementos estão tão bem equilibrados no filme de forma que este não poderia ter outro destino senão o grande êxito de crítica e de público. A temática do filme revela uma grande identificação com a vida contemporânea, que vem produzindo uma horda de pessoas invisíveis socialmente, o que está representado não apenas no pathos entre o Coringa e os cidadãos de Gotham City como da personagem com o espectador, que torce para o triunfo dela.

Sociólogos como Marcel Mauss e Émile Durkheim advertem que as emoções não são apenas pulsão, ou seja, derivadas da irracionalidade, mas que teriam, também, um aspecto social que garantiriam a coesão entre os membros de uma sociedade, fazendo com que o indivíduo se sinta pertencente a um grupo. As emoções seriam uma representação da consciência coletiva.

Para Durkheim, é preciso fazer uma descrição das categorias emoção-norma-julgamento do comportamento social de acordo com os seguintes eixos: o grau de universalidade, a especificidade cultural, a maior ou menor orientação acional, a racionalidade, mais ou menos evidente sobre o comportamento do outro em relação às normas de justiça.

Em seu estudo sobre o efeito patêmico das emoções na organização do discurso, Patrick Charaudeau analisa a simpatia. Ele considera que ela é resultado de uma relação triangular na qual o sujeito se vê identificado com o perseguido. Esse estado de emoção (as crenças morais) em relação ao perseguido é uma espécie de comportamento de “ajuda” para aliviar-lhe o sofrimento. Esse sentimento não necessariamente deve ser entendido como uma tomada de partido. Como diz o estudioso francês:

“Quanto mais o perseguido é anônimo (arquétipo) e obscuro, mais a simpatia será justificada”.

Todos esses elementos, aliados à estética obscura ambientada para a personagem Coringa, fazem um caldo para ela ter a ascensão e o clímax para ganhar a simpatia do público.

Arthur (não o Coringa, ainda) é um homem de cerca de 35 anos que vive com a mãe em uma área marginalizada de Gotham City. A personagem anda, corre e sobe as cansativas escadas que o levam ao seu edifício como uma metáfora de sua exaustão psíquico-social. Arthur tem um distúrbio mental que o faz rir de forma histriônica, uma condição paradoxal para um palhaço sem graça.

Numa análise do filme, Bruno Cava, em sua conta no Facebook, faz a seguinte distinção entre o drama e a comédia:

“O dramático nos apela a um vínculo íntimo, uma empatia pessoal, enquanto o riso vai na outra direção, concitando a coletividade. O humor que não se dá em grupo não tem graça e, por causa disso, as comédias tendem a multiplicar personagens e colocar em jogo os hábitos sociais”.

Para ilustrar a sua fala, ele lembra do assassinato que tem como testemunha o anão Gary, que não consegue fugir, abrindo a porta, devido à sua condição. É quando, assustado, pede ajuda a Arthur, o assassino, para abri-la para ele. Este é um momento no qual a plateia participa do filme, manifestando seu sentimento de “Ah, coitado” com ou sem gargalhadas. Essa cena mescla o drama e a comédia, porque envolve uma personagem com nanismo que acaba de passar por um trauma, ou seja, o riso seria inadmissível nessas condições, mas ele vem de forma espontânea para muitos, o que não significa que não haja sensibilidade para com Gary.

Coringa é o resultado de experiências sociológicas que levaram à criação de um homem profundamente triste. Um homem sem lar, membro de uma família doente que dele abusou e abandonou, como também o fez a sociedade de Gotham, uma cidade invadida por ratos – literal e simbolicamente. Ainda que consciente de sua “doença mental”, Arthur se esforça para ser uma pessoa doce, gentil, sociável e compassiva.

O neurocriminalista Adrian Raine, professor da Universidade da Pensilvânia dedicado a pesquisas sobre a mente de criminosos violentos, analisa que Coringa é “uma representação surpreendentemente precisa do tipo de contexto e circunstâncias sociais que, quando combinadas, criam um assassino”, disse ele à Rolling Stone. O especialista avalia os fatores que fizeram de Arthur o Coringa: abuso físico, negligência e subnutrição na infância. A pobreza é um fator que aumenta o risco.

Entretanto, como analisa o Cinema Pop, o Coringa vai sendo gestado à medida que a personagem Arthur entra em colapso junto com  a sociedade de Gotham, cujos princípios éticos e morais viram ruína. Arthur percebe que não está sozinho em seu suposto isolamento social: há uma multidão dos sem-riso, dos sem-nada, que está invisível e vê em Coringa a possibilidade de estarem em comunhão.

Mas é quando Arthur mata a mãe é que o Coringa é parido. A morte da mãe é, também, simbólica, pois permite à personagem sair da tutela materna para ser ela mesma. É dessa ruptura que Arthur encontra a sua própria voz no Coringa, a sua face mais autêntica.

Como pontua Cava:

“Os revoltosos não querem mais ser a piada mas nem por isso renunciaram ao poder do riso. Daí a união política com um vilão que faz do homicídio a sua principal piada. Eles não pedem que se compadeçam deles, e não querem a sua empatia. Eles querem rir de você, provocá-lo, tirá-lo do sério”.

Isso porque a promessa de felicidade feita à civilização não se concretiza, como discorre Sigmund Freud em Mal-estar na Civilização, e sim leva ao sofrimento e à solidão.

Sobre a estética do filme, há vários pontos a serem destacados, como a paleta e o jogo de cores, que se alteram de acordo com os estados mentais da personagem. Outro aspecto que merece ser chamado a atenção é uso da estética do clown, que se manifesta na gestualidade do Coringa e é ratificada quando Arthur, no teatro, encanta-se com uma cena de Charles Chaplin.

A estética clown, protagonizada por Chaplin e tão encenada no neorrealismo italiano, tem uma estrutura fundamentada na tensão entre fantasia e realidade. O clown é aquela figura que apela ao cômico, seja ele explícito ou não, para denunciar as mazelas sociais através de aspectos como: exagero, subversão e transgressão, analisa Cristiane Valéria da Silva em sua tese sobre a estética clown no cinema.

O prestigiado documentarista estadunidense Michael Moore, conforme divulgado pelo site Vermelho, fez uma crítica contundente sobre Coringa, que vem sendo alvo do conservadorismo caro ao seu país. Nos Estados Unidos, tem havido uma investida contra o filme, acusado de ser temerário, violento, doentio e corruptível. Moore sugere exatamente o contrário: que Coringa é um filme absolutamente necessário de ser visto pela sociedade americana,

“porque a história que conta e as questões que levanta são tão profundas, tão necessárias, que se você olhar para longe do gênio desta obra de arte, você vai sentir falta do dom do espelho que ela está nos oferecendo. Sim, há um palhaço perturbado nesse espelho, mas ele não está sozinho – estamos ali ao lado dele”.

Seguindo em sua crítica, Moore faz um paralelo entre Coringa e o país que elegeu Donald Trump: um país que não sente empatia com o pobre. E lança o questionamento:

“E se um dia os despossuídos decidirem lutar? E eu não quero dizer com uma área de transferência registrando pessoas para votar. As pessoas estão preocupadas que este filme possa ser muito violento para eles. Sério? Tendo em conta tudo o que vivemos na vida real? Você permite que sua escola faça ‘exercícios de tiro ativo’ com seus filhos, de forma permanente, prejudicando-os emocionalmente como nós mostramos a esses pequenos que esta é a vida que criamos para eles. Coringa deixa claro que não queremos realmente chegar ao fundo disto, ou tentar entender porque é que as pessoas inocentes se transformam em coringas depois que não conseguem mais mantê-lo juntos”.

Coringa não é só um filme necessário pela reflexão sociológica que provoca, mas porque é capaz de mostrar que há beleza até mesmo nos lugares mais improváveis. A estética do filme dança com a leveza da personagem doentia que nasce – e, mesmo no caos e no horror, o filme é belo!

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Gisella Meneguelli

É doutora em Estudos de Linguagem, já foi professora de português e espanhol, adora ler e escrever, interessa-se pela temática ambiental e, por isso, escreve para o greenMe desde 2015.


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