Relatora da ONU visita povos indígenas brasileiros


Após uma visita ao Brasil entre os dias 7 e 17 de março, a relatora da ONU Victoria Tauli-Corpuz falou sobre as condições dos indígenas no país.

Segundo ela, “em termos gerais, minha primeira impressão após esta visita é de que o Brasil possui uma série de disposições constitucionais exemplares em relação aos direitos dos povos indígenas, e que no passado o país deixou patente sua liderança mundial no que se refere à demarcação dos territórios indígenas. Entretanto, nos oito anos que se seguiram à visita de meu predecessor, há uma inquietante ausência de avanços na solução de antigas questões de vital importância para os povos indígenas e para a implementação das recomendações do Relator Especial. Ao contrário, houve retrocessos extremamente preocupantes na proteção dos direitos dos povos indígenas, uma tendência que continuará a se agravar caso não sejam tomadas medidas decisivas por parte do governo para revertê-la.”

O objetivo da visita foi identificar e avaliar as questões enfrentadas pelos povos indígenas do Brasil para propor uma série de recomendações com base em sugestões anteriores, de 2008. Nos dias da visita, Victoria esteve nos estados de Mato Grosso do Sul, Bahia e Pará. Em Brasília, a relatora se reuniu com representantes dos três Poderes do Governo e participou de reuniões nos escritórios nacionais e locais do Ministério Público Federal, da FUNAI e do Vice-Governador do Mato Grosso do Sul.

Em sua visita ao Mato Grosso do Sul, ela conheceu o povo Guarani-Kaiowá; na Bahia, visitou os Tupinambás e conversou com representantes dos Pataxós; na região da Volta Grande, no Pará, esteve em Juruna, terra indígena Paquiçamba. A relatora visitou, no total, mais de 50 povos indígenas, incluindo os Yanomami, Maxakali, Manoki e Ka’apor, bem como a Rede de Cooperação Amazônica, além de ter recebido vários pedidos de visita de diversas comunidades indígenas de todo o país.

Victoria disse que tantos os representantes dos povos indígenas como a sociedade civil e o Governo forneceram-lhe um grande volume de informações, as quais serão revisadas para a elaboração de um relatório que será submetido, em setembro, ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. O objetivo do relatório é ajudar os povos indígenas e o Governo a encontrarem soluções para os desafios contínuos enfrentados por essas comunidades no Brasil.

Um ponto que a relatora ressaltou é “a dedicação dos povos indígenas às boas práticas e aos enfoques proativos de modo a prosseguir na efetivação de seus direitos. Dentre essas ações incluem-se: a elaboração de protocolos de consulta, a autodemarcação de terras, o estabelecimento de alianças com as comunidades quilombolas e ribeirinhas com vistas ao fortalecimento de seus direitos à terra e à auto governança; e a autoproteção de territórios”. Todas essas ações constituem passos importantes para a autogestão e regulamentação de seus territórios e para o exercício de sua autodeterminação e autonomia, tal como previsto na Convenção 169 da OIT e na Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas.

As primeiras impressões de Victoria com as visitas é de que o Brasil é exemplar em relação aos dispositivos constitucionais que garantem direitos aos povos indígenas, embora haja uma ausência de avanços na solução de questões vitais para eles. Houve, pelo contrário, retrocessos que preocupam a condução na garantia de proteção dos direitos dos povos indígenas. Ela relata os seguintes pontos como desafiadores para o Brasil:

• a Proposta de Emenda à Constituição, PEC 215, e outras legislações que solapam os direitos dos povos indígenas a terras, territórios e recursos;

• a interpretação equivocada dos artigos 231 e 232 da Constituição na decisão judicial sobre o caso Raposa Serra do Sol;

• a introdução de um marco temporal e a imposição de restrições aos direitos dos povos indígenas de possuir e controlar suas terras e recursos naturais;

• a interrupção dos processos de demarcação, incluindo 20 terras indígenas pendentes de homologação pela Presidência da República, como por exemplo a terra indígena Cachoeira Seca, no estado do Pará;

• a incapacidade de proteger as terras indígenas contra atividades ilegais;

• os despejos em curso e as ameaças constantes de novos despejos de povos indígenas de suas terras;

• os profundos e crescentes efeitos negativos dos megaprojetos em territórios indígenas ou próximos a eles;

• a violência, assassinatos, ameaças e intimidações contra os povos indígenas perpetuados pela impunidade;

• a falta de consulta sobre políticas, leis e projetos que têm impacto sobre os direitos dos povos indígenas;

• a prestação inadequada de cuidados à saúde, educação e serviços sociais, tal como assinalam os indicadores relacionados ao suicídio de jovens, casos de adoção ilegal de crianças indígenas, mortalidade infantil e alcoolismo;

• e o desaparecimento acelerado de línguas indígenas.

Em vistas disso, os riscos enfrentados pelos indígenas na Constituição de 1988 continuam sendo os mesmos. A mídia e outros atores retratam-nos de forma distorcida e como possuidores de grandes extensões de terra. Entretanto, é o setor do agronegócio que as ocupa. “Mesmo onde os povos indígenas possuem terras demarcadas na região amazônica, eles não desfrutam do efetivo controle sobre seus recursos devido às crescentes invasões e atividades ilegais, tais como mineração e extração de madeira”, relata Vicotoria.

Outra questão preocupante para a relatora da ONU é ameaça que os povos indígenas sofrem. “Em 2007, segundo o CIMI, 92 líderes indígenas foram assassinados, ao passo que em 2014 o número havia aumentado para 138. O estado de Mato Grosso do Sul foi o que registrou o maior número de mortes”. O alarmante nesses dados é que as autoridades governamentais não estiveram nas áreas sob ameaça para averiguar a violação de direitos humanos a que está submetida a população indígena.

A omissão do Estado sobre grandes projetos do setor privado em áreas ocupadas pelos indígenas, sem que eles sejam sequer consultados, viola a Convenção 169 da OIT e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Em relação a esses grandes projetos, algumas questões levantadas pelos povos indígenas escutados pela relatora são:

• A não implementação das condicionantes estabelecidas e das medidas mitigatórias necessárias com relação ao projeto de Belo Monte, tais como o fortalecimento da presença local da FUNAI; a demarcação da terra indígena Cachoeira Seca, bem como a regularização e plena proteção das terras indígenas Apyterewa e Paquiçamba; a compensação pela perda de seus meios de subsistência; e a criação de bases de fiscalização para proteger terras indígenas. O efeito acumulativo de tal inação foi a ameaça à própria sobrevivência dos povos indígenas impactados;

• O uso do instituto da suspensão de segurança pelo Judiciário em um crescente número de projetos de desenvolvimento para evitar questionamentos legais por parte de povos indígenas;

• A licença emitida, sem consultas, para o projeto de mineração de ouro de Belo Sun, próximo à usina de Belo Monte, e a falta de uma avaliação acumulativa dos impactos ambientais, sociais e de direitos humanos sobre os povos indígenas;

• A falta de consultas e a ausência de demarcação de terras indígenas afetadas pelo complexo da represa no rio Tapajós;

• A falta de consultas em relação à extração de bauxita e as usinas hidrelétricas associadas, que, juntas, representam um enorme complexo industrial, envolvendo povos indígenas e comunidades quilombolas em Oriximiná, no Pará;

• A poluição do Rio Doce causada pelo rompimento da barragem em Minas Gerais e seu impacto sobre povos indígenas, como os Krenak, que dependem do rio para seu sustento e subsistência;

• A ausência de consultas e consentimento para a instalação de grandes linhas de transmissão dentro de terras demarcadas protegidas pela Constituição, tais como as dos Waimiri-Atroari em Roraima.

Segundo a relatora, “esses e outros casos demonstram uma falta de compreensão, por parte do governo, sobre a natureza da consultas de boa fé, prévias, livres e informadas com povos indígenas, que são exigidas a fim de obter seu consentimento e proteger seus direitos em conformidade com as obrigações do Estado afirmadas na Convenção 169 da OIT e na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas”.

É urgente a conclusão do processo de demarcação das terras indígenas, pois isso é fundamental para a garantia dos seus demais direitos e para evitar os altos índices de desmatamento, a destruição de rios e empobrecimento dos solos decorrentes da prática intensiva de de monoculturas e atividades de mineração, o que impede as terras e as águas de garantir a sustentabilidade alimentar dos povos indígenas no futuro.

Naturalmente, é preciso vontade política para reverter esse cenário de descaso com os povos indígenas brasileiros e atender a Constituição de 1988. Da parte deles, segundo a relatora da ONU, “há uma determinação manifesta por todos os povos indígenas de manter suas culturas e suas línguas e determinar seu próprio futuro, bem como as medidas proativas que vêm tomando para esse fim, oferece motivos de esperança para os povos indígenas e a sociedade brasileira como um todo”.

Em vistas disso, Victoria apresentou uma série de recomendações em seu relatório ao Conselho de Direitos Humanos para ajudar a encontrar soluções para os desafios atuais enfrentados pelos povos indígenas:

• Medidas imediatas devem ser tomadas para proteger a segurança dos líderes indígenas e concluir as investigações sobre todos os assassinatos de indígenas;

• Devem ser redobrados os esforços para superar o impasse atual relativo à demarcação de terras, pois as soluções urgentes e vitais são possíveis caso exista a necessária vontade política;

• Há uma necessidade premente e imediata de rever os cortes propostos ao orçamento da FUNAI e garantir que as representações locais da FUNAI não sejam alvo de tais medidas, e que sejam, na verdade, fortalecidas para poder fornecer os serviços básicos dos quais dependem os povos indígenas e outros órgãos do Estado;

• Devem ser revistas e observadas a jurisprudência dos órgãos de supervisão da OIT e a orientação do Relator Especial sobre a implementação do direito a consultas prévias em relação a políticas, legislação e projetos com impacto potencial sobre os direitos de povos indígenas. Tais consultas devem ser conduzidas de forma a atender as especifidades de cada povo indígena, conforme estabelece a Convenção 169 da OIT e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas;

• O Estado deve reconhecer e apoiar as medidas proativas que vêm sendo tomadas por povos indígenas para exercer seus direitos na prática, em conformidade com seu direito à autodeterminação;

• Diálogos devem ser iniciados com povos indígenas em relação à possível realização de um Inquérito Nacional para sondar alegações de violações de seus direitos, promover conscientização e oferecer reparação para violações de direitos humanos;

• Deve ser viabilizada a efetiva participação de povos indígenas na determinação de como as minhas recomendações e as de meu predecessor podem ser implementadas e supervisionadas.

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Gisella Meneguelli

É doutora em Estudos de Linguagem, já foi professora de português e espanhol, adora ler e escrever, interessa-se pela temática ambiental e, por isso, escreve para o greenMe desde 2015.


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