Apagamento Cultural: um Fenômeno além do Cancelamento

Na esfera pública contemporânea, o diálogo sobre personalidades e obras que compõem o tecido cultural e intelectual tem sido marcado por debates intensos sobre ética, valores e comportamentos aceitáveis. Neste contexto, surgem conceitos como o de “cancelamento” e, embora menos discutido, o de “apagamento cultural“. Este último, diferentemente do cancelamento — que envolve a condenação pública e a tentativa de diminuir a presença e a influência de uma pessoa ou obra na sociedade devido a atitudes ou declarações consideradas problemáticas —, se refere a um processo mais sutil e profundo.

O que é Apagamento Cultural ou Cultura do Apagamento?

O apagamento consiste na tentativa de esquecer, ignorar ou minimizar a importância cultural, histórica ou literária de certas figuras ou obras, muitas vezes devido a aspectos de seu conteúdo ou das vidas de seus autores que entram em conflito com os valores contemporâneos.

Significado e Implicações

O apagamento não ocorre de forma repentina ou por meio de ações diretas, mas como um processo gradual, no qual a relevância e a presença de certas obras ou personalidades vão diminuindo nas discussões públicas, na educação e na cultura popular. Isso pode acontecer por meio da exclusão de currículos escolares, da diminuição da publicação de suas obras, ou da omissão em discussões e análises culturais relevantes.

O fenômeno levanta questões complexas sobre como uma sociedade decide quais aspectos de seu passado cultural devem ser lembrados, celebrados ou criticados.

Exemplos de Apagamento no Brasil

No Brasil, figuras como Bezerra da Silva, Nelson Rodrigues e Monteiro Lobato exemplificam o fenômeno do apagamento. Apesar de suas contribuições indiscutíveis à cultura brasileira — Bezerra com sua música que narrava a vida nas favelas com um olhar crítico e humorado; Nelson Rodrigues, com sua obra que explorava a complexidade das relações humanas e sociais com um estilo provocativo; e Monteiro Lobato, um dos mais importantes escritores da literatura infantojuvenil brasileira, que também deixou um legado polêmico por conta de representações consideradas racistas em algumas de suas obras por algumas pessoas —, debates sobre racismo, machismo e outras questões têm levado a um reexame crítico de suas obras e à discussões sobre como elas devem ser apresentadas e lembradas.

O Dilema do Apagamento

O apagamento confronta a sociedade com dilemas éticos e culturais significativos. Por um lado, é crucial reconhecer e confrontar aspectos problemáticos do passado e do presente para promover uma sociedade mais justa e inclusiva.

Por outro lado, tentar apagar completamente a contribuição de determinadas figuras ou obras ignorando a complexidade da história cultural e a evolução dos valores sociais ao longo do tempo pode resultar em uma perda de profundidade e nuance na compreensão cultural e histórica.

As pessoas precisam ter pensamento crítico, e não é apagando o passado que se constrói um futuro mais justo. Ao contrário, apagamento pode significar doutrinamento.

Conclusão

O desafio, então, é encontrar um equilíbrio entre o reconhecimento crítico das falhas e limitações nas obras e vidas de figuras culturais importantes e a apreciação de suas contribuições ao patrimônio cultural. A solução não está no apagamento, mas em uma abordagem mais matizada, que inclui a crítica construtiva, o debate aberto e a educação sobre o contexto histórico e cultural em que essas obras foram produzidas.

Assim, é possível valorizar o legado cultural enquanto se promove um diálogo contínuo sobre valores, ética e representação.

Podem tentar apagar a história e a cultura, mas grandes autores e artistas não são canceláveis.

Vídeo

Veja no vídeo abaixo o que o Repórter Julio Maria fala sobre o apagamento do Bezerra da Silva, e o filósofo Luiz Felipe Pondé fala sobre o apagamento do Nelson Rodrigues.

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