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Nos últimos anos, vivemos uma explosão de diagnósticos de Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). O que antes era uma condição pouco compreendida, hoje se tornou quase um jargão cotidiano. Pessoas que não conseguem se concentrar em uma leitura, se perdem em textos simples ou cometem erros básicos de escrita frequentemente se autodiagnosticam: “Tenho TDAH”. Mas será mesmo?
menina escreve “socorro” na lousa da escola
Enquanto isso, o Brasil enfrenta um problema estrutural que parece ser convenientemente ignorado nesse debate: quase 3 em cada 10 brasileiros entre 15 e 64 anos são analfabetos funcionais. São pessoas que, mesmo após anos de escolarização, não compreendem textos, não conseguem interpretar informações simples nem resolver problemas básicos. Isso não é doença, é falência educacional.
Vamos deixar claro: TDAH é uma condição neurobiológica real, diagnosticada por profissionais da saúde com base em critérios clínicos. Ele pode causar sofrimento e comprometer significativamente a vida acadêmica, profissional e afetiva da pessoa. Mas o uso indiscriminado do diagnóstico virou, em muitos casos, um álibi para justificar preguiça de ler, dificuldade em estudar, desatenção crônica alimentada por excesso de telas, ou simplesmente falta de esforço.
Vivemos uma época em que assumir a própria ignorância parece ser mais vergonhoso do que se declarar portador de um transtorno. Há quem prefira dizer “tenho TDAH” a admitir: “não gosto de ler” ou “nunca aprendi a interpretar um texto”. É mais confortável se escudar em um rótulo médico do que reconhecer que o problema pode estar na formação deficiente, no desinteresse ou até mesmo na negligência pessoal.
Essa banalização do diagnóstico não só atrapalha o debate, como prejudica quem realmente tem TDAH e precisa de acolhimento, diagnóstico preciso e tratamento. O que está em jogo aqui é o risco de transformarmos qualquer dificuldade cotidiana em patologia — e isso, além de injusto, é perigoso.
O analfabetismo funcional no Brasil é um sintoma social, não médico. É o reflexo de décadas de políticas públicas falhas, baixa valorização da leitura, cultura do imediatismo e sistemas educacionais que passaram alunos sem garantir aprendizagem. Quando confundimos isso com TDAH, trocamos um problema educacional por um rótulo clínico — e nada melhora.
Mais grave ainda é quando figuras públicas, influenciadores e até educadores repetem erros crassos de leitura, interpretação ou escrita e justificam isso com “TDAH”, sem jamais terem sido avaliados adequadamente. Isso banaliza o transtorno e normaliza o fracasso educacional.
Não é TDAH quem escreve ‘poSSar ser’, quem não consegue distinguir ficção de documentário, quem não entende ideias simples depois de um parágrafo. Isso é falta de leitura, de formação, de educação crítica — e não se resolve com ritalina ou com laudos apressados.
TDAH não é desculpa para o desinteresse pela formação intelectual. Não podemos tratar como doença aquilo que, muitas vezes, é apenas desleixo cultural. Isso desresponsabiliza o sujeito, enfraquece a educação e empobrece ainda mais o debate sobre saúde mental.
É preciso parar de transformar tudo em transtorno. Nem todo mundo que tem dificuldade de atenção está doente. Muitos apenas não foram ensinados a pensar, a ler com profundidade, a argumentar. E isso só se resolve com esforço, estudo e, acima de tudo, compromisso com a própria formação.
Além disso, é importante considerar o papel das redes sociais nesse cenário. O uso exagerado dessas plataformas — que operam em ciclos curtos de atenção, estímulos visuais constantes e gratificação imediata — compromete a capacidade de concentração e leitura sustentada. Isso reforça a cultura da superficialidade, onde mensagens curtas substituem reflexões complexas, e onde a dificuldade de leitura ou interpretação pode ser erroneamente confundida com um transtorno neurológico. A consequência disso é dupla: por um lado, banaliza-se o diagnóstico do TDAH; por outro, perpetua-se o analfabetismo funcional, agora mascarado sob o véu do discurso médico.
Responsabilizar-se pela própria ignorância é o primeiro passo para superá-la. E isso começa com o fim da desculpa pronta. TDAH não é muleta para justificar o que a escola, a sociedade — e o próprio sujeito — deixaram de fazer.
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Fontes:
Agência Brasil – Inaf 2022: 3 em cada 10 brasileiros são analfabetos funcionais
CNN Brasil – Hiperdiagnóstico de TDAH: como diferenciar o transtorno de outras condições
Categorias: Sociedade
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