Canoa caiçara: arte antiga, herança indígena que povoa nosso litoral


Você já subiu numa canoa caiçara? Talvez sim, talvez não. Se você for praieiro como eu, então até deve ter tido a oportunidade de ver uma dessas canoas de um pau só subindo ou descendo o rio. Mas subir numa delas, e navegar, já é bem mais difícil. O problema todo é que nós, urbanos, não temos o equilíbrio absoluto que o caiçara, homem de serra e mar, tem. O caiçara, você sabe, navega de pé ou de joelhos na sua canoa, que é empurrada com um remo ou vara. Sobe ou desce o rio conforme a maré, que é preciso saber aproveitar das forças naturais.

A canoa caiçara, vou te contar, é feita em um tronco de árvore escavado. Em tempos bem mais antigos, o miolo da árvore escolhida era queimado lentamente até que se conseguisse o formato aproximado desejado. A limpeza do tronco, retirada das partes queimadas, era feita com enxó. Também podia ser entalhado com o machado, mas com cuidado pois, uma fenda mal feita estragava o tronco de forma irremediável. Mais recentemente, em tempos de serra elétrica, o tronco é aberto, cerrado, escavado com outros instrumentos. Mas é sempre a enxó que dá o acabamento final.

Antigamente o caiçara escolhia a árvore que ia talhar dentre aquelas que já estavam prestes a findar sua vida, ou mesmo escolhia os troncos já caídos. Nas serras litorâneas onde abundam os guaperuvús e as figueiras, eram essas as preferidas, e ainda o são. As canoas eram talhadas no próprio lugar de queda da árvore e depois, empurradas sobre troncos roliços, até a beira d’água. Hoje em dia é proibido derrubar árvores para fazer canoas, também é proibido usar os troncos caídos. Para fazer uma canoa o entalhador deve obter uma autorização especial dos órgãos de fiscalização ambiental. São as necessidades de preservação ambiental que ditam essas regras, e tem sua lógica. O que não têm lógica é impedir, ao caiçara, que exerça essa sua arte milenar tão necessária à pesca e ao transporte de populações isoladas nas serras.

Aqui lembro as palavras de um mestre canoeiro, Seu Casimiro, que entrevistei em Iguape, no Mumuna, lá pelo ano 2000. Estas palavras, sentidas, foram publicadas no livro Cultura Caiçara, resgate de um povo (2005), mas continuam muito válidas ainda hoje. Seu Casimiro, lembro bem, contava das dificuldades que tinha para repor as canoas que a sua comunidade precisava:

“Fez a canoa prá ele, que as outras duas que estão em uso,

são muito velhas e estão querendo rachar.

Já remendou, calafetou, pregou lata.

Tudo se acaba um dia. Tinha que fazer outra.

Fez escondido porque é proibido. Eu não entendo.

Proibido por quê? Tá certo proteger o mato,

que isto é coisa de precisão, mesmo.

Mas o que é que uma canoa de um pau só pode fazer de

tão ruim assim, me conta? “

Ou de outra canoa que foi feita por Seu Avelino, um dos guardas antigos da Estação Ecológica da Juréia-Itatins. Apesar da idade avançada e da perna aleijada, Seu Avelino era um dos guardas mais respeitados, por seus conhecimentos da mata e disposição para ensinar. Também era mestre canoeiro, isso quando me contaram sua história, em algum mês de 2.000, quando andei por aquelas bandas pesquisando o assunto.

Enfim, um dia Seu Avelino encontrou uma grande figueira caída e aí foi que começou a história da canoa que ele fez no tronco da figueira brava derrubada pelo raio – era uma árvore imensa, a copa queimou com o raio, um tronco grosso e reto, de boa madeira. O diretor da Estação Ecológica autorizou o velho artesão a usar aquele tronco caído. Seu Avelino ficou mais de mês trabalhando o tronco, desbastando no machado, alisando na enxó, até que a canoa ficou pronta. Foi preciso a ajuda dos outros guardas para levar a canoa até o rio. Uma canoa linda, leve e firme, não muito grande, mas com o equilíbrio perfeito. Esta canoa serviu às suas travessias do Guaraú até o dia em que uma onda traiçoeira a jogou nas pedras; mesmo assim foram dez anos de muita água para um tronco que ninguém dava nada por ele, apodrecendo na mata sem serventia nenhuma; e poderia ter durado mais de cinquenta anos não fossem as pedras e a ressaca. Esta é uma história bonita, de prazer e utilidade nas coisas simples que o caiçara sabe.

O ofício de fazer canoas em tronco de árvore está se perdendo, e assim uma técnica milenar sendo esquecida mas, um dia pode ser necessário relembrar tudo isso, para uma vida mais sustentável. Se você quiser conhecer mais, dê uma olhadinha aqui neste blog.

Técnicas milenares, artes sustentáveis que se utilizam de recursos naturais já em declínio, canoas que permitem a pesca em rio e mar, reaproveitamento das árvores caídas naturalmente, tudo isso, um dia, pode ajudar a alimentar um povo. Pense nisso!

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Redação greenMe

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